Jovens escravizados em Mianmar eram obrigados a dar golpes em brasileiros

18 fev 2025 - Destaque / Policial

“Fui saber do Luckas três dias depois que cheguei. (…) Me falaram que ele não queria trabalhar e que o prenderam. No mesmo dia, eu estava indo para o meu dormitório, errei a porta e vi o Luckas lá amarrado com as duas mãos em um quarto todo escuro”, disse.

 

Apesar de proibidos de se comunicarem por serem da mesma nacionalidade, Luckas e Phelipe se aproximaram e combinaram a fuga juntos.

A fuga

 

A fuga foi combinada pelos reféns, que conseguiram avisar familiares e ativistas sem que fossem descobertos pelos mafiosos, que monitoravam tudo.

Após fugirem, eles foram detidos por agentes do DKBA (Exército Democrático Karen Budista) e levados a um centro de detenção. Três dias depois, foram transferidos para a Tailândia, onde aguardaram a embaixada brasileira.

“A gente planejou a fuga três vezes. A primeira seria no dia 1º de janeiro, quando deram uma folga pra gente. A segunda, a gente tentou no Ano Novo chinês, em 28 de janeiro, só que ficamos sabendo que teriam mais de 500 guardas no rio. Então, planejamos para o dia 8″, disse Phelipe.

Os brasileiros Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos Santos, mantidos reféns por três meses por uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar, no Sudeste Asiático, eram obrigados a aplicar golpes em outros brasileiros.

Eles tinham que se passar por uma modelo chinesa que pedia ajuda financeira e, caso não o fizessem, podiam sofrer punições que incluíam até eletrochoques.

É o que revelou Phelipe Ferreira em entrevista ao g1 sobre a rotina de escravidão em KK Park. Ele se tornou vítima de tráfico humano após aceitar uma falsa oferta de emprego em novembro de 2024. O local é considerado uma “fábrica de golpes online”.

Segundo ele, havia um roteiro a ser seguido. “Nesse script, a gente perguntava ao cliente, no primeiro dia, informações como nome, idade, país onde morava, se era solteiro, casado, viúvo, com o que trabalhava e o salário. Já no quarto dia, a gente pedia uma ajuda. Falava que trabalhava numa plataforma online chamada Wish e, se ele ajudasse, ganharia uma comissão de 30 dólares“, contou.

No outro dia, eles voltavam a pedir ajuda. O cliente ganhava a comissão, só que, dessa vez, tinha que terminar de fazer algumas tarefas na plataforma e precisava fazer recargas.

Phelipe relatou que uma cliente do Caribe chegou a sofrer golpe de um chinês de 350 mil euros. Ela fez empréstimo e comprou uma casa, porque o golpista prometeu que viajaria para viver com ela.

Depois, a máfia queria que o brasileiro tentasse extorquir mais dinheiro dela. “Eu tentava desviar o assunto com ela, mas meu antigo líder falava: ‘Não, a gente vai ter que dar golpe, ela é rica’. Eu tentava procurar gente mais pobre para não dar certo o golpe, mas aí eu poderia ser punido. Era horrível”, conta.

Segundo Phelipe, ele e outros imigrantes trabalhavam, em média, 16 horas aplicando golpes cibernéticos, e eram monitorados a cada 10 minutos.

Às vezes, a gente trabalhava 22 horas por dia. A gente tinha líderes de equipe, todos chineses, que monitoravam a gente a cada 10 minutos. Se não cumprisse aquela meta, no final do mês eu ia receber a punição. A punição era eletrochoque, espancamento ou squat down, que é fazer agachamento. Recebi punição três vezes”, conta.

Depois, ele mal conseguia andar: “A minha perna travou, mas, mesmo assim, eu tinha que trabalhar”.

Phelipe viu outros reféns sofrendo agressões e chegou a pensar que uma hora seria morto. No quarto dele, havia um homem de outra nacionalidade que tentou escapar sozinho e, ao ser pego, foi espancado durante 20 dias, levou eletrochoque e foi preso. Segundo ele, o homem depois ficou preso à cama de ferro com pés amarrados.

“Eu pensava: ‘Vão matar gente’. Meu maior medo era levar choque. Porque eu sei que levar choque pode matar a pessoa. O meu maior medo era esse”, ressaltou.

 

Na fuga, um guarda veio atrás dele com um facão e mandou que voltasse. Todos foram levados para um quarto, onde ficaram durante um dia.

“O meu antigo chefe entrou no quarto com o meu antigo líder e espancou a gente. Nesse momento, eu já não tinha mais esperança. Mas, depois de um dia lá, a tribo Karen entrou e resgatou a gente. Nesse momento, chorei tanto, mas tanto”, lembrou.

Futuro

Agora, Phelipe só quer voltar para casa e esquecer o que viveu.

“Ver pessoas sendo espancadas, levando choque, ver o Lucas ser espancado e não poder fazer nada. Aquilo me machucava bastante. Sempre ia para o meu quarto chorar, porque não aguentava. Agora, quero descansar, terminar minha faculdade e fazer tratamento psicológico para esquecer”, disse.

 

O jovem alerta ainda sobre os cuidados necessários para que outras pessoas não caiam em armadilhas e virem vítimas de tráfico humano. “Vim para cá com um sonho, que foi destruído. O alerta que tenho para dar é sempre procurar saber mais sobre a empresa que você vai trabalhar e se é realmente legalizada”, diz.

A mãe de Luckas conta que o filho recebeu uma proposta para trabalhar em um cassino nas Filipinas no início de 2024. Após alguns meses no cassino, o estabelecimento fechou e, como Luckas não tinha dinheiro para voltar ao Brasil, procurou outras oportunidades pela região.

Pelo Telegram, ele recebeu um convite para trabalhar na área da tecnologia em Mae Sot, cidade tailandesa na fronteira com Mianmar. A viagem foi marcada para 7 de outubro. Luckas, no entanto, acabou sendo levado por mafiosos para KK Park, em Mianmar, e passou a ser escravizado.

  • Novembro de 2024

Phelipe é feito refém em novembro de 2024. O pai dele, Antônio Ferreira, conta que o filho já havia trabalhado em 2023 em outros países e, em 2024, de volta ao Brasil, teve uma proposta de emprego no Uruguai. Decidiu sair novamente do país para trabalhar fora.

No Uruguai, recebeu pelo Telegram uma proposta de emprego na área da tecnologia na Tailândia. Ao chegar, um motorista o buscou no hotel e o levou para Mianmar, onde se tornou refém com outros imigrantes. O local é o mesmo onde Luckas já estava. Os dois, até então, não se conheciam.

  • Dezembro de 2024

Phelipe ficou semanas sem dar notícia, até conseguir se comunicar escondido com a família. O pai procurou a polícia, mas foi orientado a falar com a Embaixada do Brasil Mianmar. Luckas também conseguiu se comunicar com a família. A mãe dele passa a divulgar o caso nas redes sociais pedindo ajuda.

As duas famílias, então, começam a ser assistidas pela ONG The Exodus Road”, organização civil internacional de combate ao tráfico de pessoas.

  • 15 de janeiro de 2025

Em 15 de janeiro, há uma reunião entre integrantes da ONG e representantes do governo de Mianmar e da Tailândia para a liberação de 371 vítimas de tráfico de pessoas, incluindo os dois brasileiros.

  • 8 de fevereiro de 2025

Phelipe avisa o pai que tentaria a fuga no dia 8 de fevereiro junto com outros imigrantes. Nas mensagens, às quais o g1 teve acesso, ele conta que ia cruzar um rio com outras 85 pessoas e correr por dois quilômetros. Phelipe pede orações e ainda se despediu caso algo acontecesse com ele.

Luckas também avisa a família. E, na sequência, ativistas são informados sobre a fuga e já se mobilizam em relação às documentações que comprovassem que os dois eram vítimas de tráfico humano.